domingo, 12 de junho de 2011

SINDYCLAYDE E ROSA MARIA: AS MAIS POPULARES DO QUARTEIRÃO

Essa ilustríssima contribuição que segue abaixo é de uma grande amiga, antiga companheira de cena e de criações dramatúrgicas inesquecíveis, Márcia Shoo (quando o "Shoo" começava com D). Ela postou essa resenha no Facebook (26/05/2011) e ao ler não me contive. Solicitei a liberdade de postar aqui no Contando a Cena. E ela permitiu!!! Então deleitem-se! T.S.


Por Márcia Shoo*
 
Fui “voyerizar” o que as mulheres gostariam que fizessem com elas na cama. A segunda temporada de Devassas, peça que marca os 15 anos de carreira da atriz alagoana Ivana Iza, virou um fetiche tão curioso em Maceió que pecado seria não provar da maçã que seduziu até as mais puritanas castas alagoanas não assíduas do teatro local.
 
A primeira visão excita logo na chegada ao teatro com a fila de espectadores. Grande. Enorme. Homens e mulheres balançam seus ingressos na mão, na expectativa de penetrar a sala escura do teatro antes de as portas, pontualmente, serem fechadas. Situações como essa são inéditas quando estamos falando da maior parte do público consumidor de programação cultural na cidade que não tem o hábito de sair de casa para assistir a espetáculos produzidos e encenados por artistas da casa; geralmente por desconhecer o movimento local de grupos, artistas e produções, ou mesmo por um preconceito incrustado em relação ao que é feito na própria terra. Mas uma coisa está ligada a outra. O desconhecimento gera o preconceito e vice-versa. E esta cultura por sua vez é alimentada pela falta de políticas de incentivo à produção e à valorização das artes locais.
 
Mas o sucesso de Devassas, tão contagiante quanto o seu marketing viral nas redes sociais da internet, fez do espetáculo um dos maiores formadores de plateia de teatro em Maceió, da casa para a casa, como não se via, acho, desde A Farinhada (1997), peça escrita pelo sociólogo alagoano Luiz Sávio de Almeida, encenada pela Associação Teatral Joana Gajuru e dirigida por René Guerra. O espetáculo, que também foi sucesso absoluto entre o público local e premiado em diversos festivais nacionais, contou com o envolvimento de alguns dos mesmos realizadores de Devassas, como o diretor Flávio Rabelo, o gerente de produção Eris Maximiano e a própria Ivana Iza, que atuou nos últimos anos de vida da peça. 
 
De um lado, em A Farinhada, a história de Rosa Maria: a jovem que sobrevive a duras penas trabalhando em regime de exploração numa casa de farinha, situada na zona rural alagoana. Rosa vê seu romance com o jovem companheiro de sina, Pedro Bom, ser tragicamente encerrado após ter sido violentada sexualmente pelo patrão, que, não satisfeito, mata o mocinho num duelo de vingança. 
 
Do outro lado, em Devassas, a história de SindyClayde: a vendedora de potes de plástico com tampas mistas que garante às mulheres uma  vida mais “saudável, organizada, arrumada e acondicionada” através dos ensinamentos de sua finada mentora na arte de não deixar que as coisas e a vida se estraguem. Displicente e bastante comunicativa, Si, como sugere ser chamada, revela sem papas na língua para a plateia de “clientes-amigas” e seus respectivos parceiros a divertida e despudorada trajetória de suas experiências sexuais, distribuídas entre as quatro personagens interpretadas por Ivana, que está sozinha em cena durante todo o espetáculo; exceto nos momentos em que a presença de outros se dá pelas ótimas interações audiovisuais e com o público.
 
Rosa Maria termina a vida na velhice, vagando pela própria loucura, alimentando a lembrança do amor interrompido pela opressão masculina. Já SindyClayde propõe, logo no início do espetáculo, um juramento coletivo entre as clientes-amigas para que não se abstenham do direito de atingir vários orgasmos numa mesma noite.
 
Abordada em contextos completamente diferentes, a sexualidade feminina é um ponto em comum nos conflitos das duas peças. Se no primeiro sucesso o público foi chamado a se deparar com o lado obscuro do tema, ambientado num universo de tradições patriarcais não tão distantes do que herdamos daquela realidade, no sucesso mais recente o público é seduzido para virar cúmplice dos mais lascivos desejos e posturas sexuais de mulheres em busca do prazer geral da nação. Da nação heterossexual. Com a quantidade de tabus satirizados em uma hora e meia envolvente de peça, a devassa lésbica ficou de fora. Mas sem qualquer sentido discriminatório. O recorte da dramaturgia, escrita por Ivana, quer apenas estabelecer um olhar mais atento e libidinoso entre os sexos opostos que se atraem mas se retraem no meio de tanta repressão que permeia o assunto e a prática do sexo.
 
Em cena, Ivana está com tudo. Vive o auge das admirações que provoca nos palcos desde atuações como em Fulaninha e Dona Coisa (2001, direção de René Guerra), Versos de um Lambe Sola (2007, direção de Eris Maximiano), entre outros ótimos trabalhos dos quais participou. Além do texto, Ivana também assina em Devassas a concepção de figurinos e cenário sem deixar a desejar na estética e na praticidade das composições. Segue bem acompanhada com a participação de artistas como o músico e produtor musical Pedro Ivo Euzébio (Tup) na criação da trilha sonora, e o diretor, ator, performer e pesquisador Flávio Rabelo, responsável pela cuidadosa e criativa regência do monólogo.  
 
Com apenas sete meses de vida, e prestes a encerrar neste próximo fim de semana a sua segunda e arrebatadora temporada, Devassas planeja agora participar da agenda nacional de festivais e apresentar-se em algumas capitais do país. Indícios de que a popularidade aumentará. Que me perdoe Rosa Maria, mas Sindyclayde já é mesmo um fenômeno arrasa-quarteirão.


* Márcia Shoo, 31 anos, é radicada em Maceió desde a infância e morou os últimos 6 anos no Rio de Janeiro, onde estudou dramaturgia cinematográfica e realizou alguns projetos de documentário. Fez teatro durante alguns anos, integrando e atuando em grupos alagoanos como a extinta Companhia das Mãos e o coletivo multi-linguagens Saudáveis Subversivos, do qual é parceira em projetos de audiovisual [sem esquecer do Grupo de Teatro Horae, do Colégio Marista, no qual nasceu o esquete "O Ônibus" apresentado centenas de vezes nas mais variadas circunstâncias e formatos]. É jornalista formada pela UFAL, roteirista, escreve peças, contos e poesias esporadicamente e descreve-se na terceira pessoa do singular.

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